domingo, 7 de janeiro de 2018

"Uma janela que não abre"


Um ano novo é todo um novo mundo, como uma vida nova ou uma folha nova, toda em branco, para estragar.  Momento dos planos para as grandes mudanças (que em geral não sobrevivem nem um mês, tudo se diluindo por alturas do Carnaval), arrumações e limpezas seja de papeis ou de teias aranha mentais.

A mim dá-me para a limpeza de agendas, nomeadamente as telefónicas, mesmo estas mais actuais, devidamente informatizadas, guardadas algures numa imaginária nuvem, caindo direitinha nos secretos trilhos que levam aos nossos telemóveis, que por serem quase seres pensantes de tão inteligentes já se chamam “smartphones” (só isto daria toda uma crónica, a isso voltarei se me faltar o assunto).

Mas voltando ao tema… olho a lista dos meus contactos e conforme a vou correndo assalta-me múltiplas vezes o pensamento – será que é ainda este o número de Fulano ou Beltrano? – por haver nela tanta gente com quem não falo há anos. Ocasionalmente apetece-me fazer uma razia, limpando nomes de gente com quem nunca falo, que nunca me liga e a quem não me lembro de ter grandes ganas de ligar. Por vezes faço-o, e só poucas vezes me arrependi disso, outras acabo por manter o nome na lista, ainda que sem saber se o número se mantém, é assim como uma memória de que aquela alminha, nalguma altura da sua vida, se cruzou comigo, que nalgum tempo tive a necessidade de lhe ligar, de comunicar, ou vice versa, ou que pelo menos me passou na ideia essa necessidade.  



Há, é claro, a limpeza dos que morrem, a nostalgia da sua ausência para sempre – “saudade, querer a luz de uma janela que não abre” – Abrunhosa dixit e é aqui mesmo que mais me delongo, dedo apontado ao “delete”, antes do golpe final. Para quê manter um número que é a janela que não abre nem abrirá nunca mais e porque custa tanto apagá-lo como se ao apagar um nome enterrássemos mais fundo quem já não está? Lembro um amigo a quem, logo após a sua prematura e auto-inflingida morte, eu e uma outra amiga experimentamos ligar para ouvir a sua voz no gravador de mensagens – fi-lo uma ou duas vezes e depois apaguei o número. É uma estranha experiência de desacordo connosco mesmo, ou com o mundo como ele é, que sei eu? À época lembro-me de o comentar com essa amiga, ambas achamos que era algo perverso dentro de um quadro de ternura póstuma – devíamos ter ligado antes e mais vezes. E a isto torno uma e outra e outra vez, sobretudo neste correr de agenda anual. Quantas vezes ligamos tarde demais? Quantas vezes adiamos o inadiável, o amor que se não pode adiar como disse, e tão bem, Ramos Rosa?

E de novo aos poemas me devolvo:

“A noite passada enviei um SMS a meu Pai
Mas ele não respondeu. Já kontava kom issu. O
corpo dele baixou faz
outro mês amanhã
nenhum de nós destinou o Sony Ericsson
dele ao rectângulo do caixão. […]”

(João Luís Barreto Guimarães)

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